“O Mercado Visto da Rua”: O Processo de Licenciamento Imobiliário em Portugal
Por vezes temos que olhar para as coisas com uma perspetiva diferente, com uma “perspetiva independente”. Ajuda-nos a compreender processos, descobrir falhas e sugerir soluções.
Apesar da “apatia do mercado imobiliário no mês de Agosto”, um processo de consultoria em que tenho participado “obrigou-me” a refletir sobre o processo de licenciamento de projetos imobiliários em Portugal. Normalmente, quando abordamos o tema, as reações são “automaticamente negativas” e o processo é uma “Dor Aguda” no ciclo de Promoção Imobiliária.
Os requerentes culpam a inércia do sistema das entidades licenciadoras, as entidades licenciadoras culpam os requerentes e a má instrução dos processos.
Mais do mesmo. Muita polémica e poucas soluções. Cada um puxa a brasa à sua sardinha e ninguém se entende.
Mas será fácil o entendimento entre as partes? Não me parece.
Porquê? Porque as partes envolvidas assumem sempre uma postura divergente. Apontam-se problemas mas não se sugerem soluções.
As propostas de simplificação apresentadas no “Programa Mais Habitação” vão resolver as “questões existentes”? Confesso que não acredito. No entanto é de salutar a tentativa. É preciso começar por algum lado, no entanto, a história diz-nos que demasiados facilitismos conduzem a grandes complicações.
Vamos então analisar o Processo de Licenciamento de forma muito simplificada. Para isso, defini 4 fases distintas onde claramente distinguimos o “Antes de Obra” e o “Pós-Obra”.
Bem sabemos que durante o decurso de obra poderão existir alguns procedimentos relacionados com alterações ao projeto licenciado. Esta é uma questão sensível no que diz respeito à Fase 4, a obtenção da Licença de Utilização. Por vezes, alterações que decorrem da própria execução de obra não são aceites em Telas finais (mesmo que não modifiquem a estrutura do edifício, tipologias, áreas, morfologia, etc).
Fase 1 ) Uso, Volumetria, Aprovação Arquitetura
PIP (Pedido de Informação Prévia) - Este tipo de projeto não é vinculativo. Pode ser mais desenvolvido ou menos desenvolvido (mais detalhado ao nível da especificação dos desenhos e projeto) e o seu principal objetivo é validar uma determinada volumetria e uso para um terreno ou edifício.
Quando o nível de especificidade do projeto é mais desenvolvido, pode permitir menor grau de complexidade ao nível da aprovação do Projeto de Arquitetura. Tempo necessário para aprovação, 3 a 9 meses.
Comunicação Prévia – É um processo que permite a simplificação do processo de obtenção do Alvará de Construção, otimizando o tempo necessário. Não é aplicável para todo o tipo de processos de licenciamento urbano. Normalmente, quando temos processos de Urbanização/Loteamento que foram aprovados e validados previamente e pretendemos obter o Alvará de Construção para um determinado “Lote”, a Comunicação Prévia é a solução. Por outro lado, quando temos edifícios existentes onde não pretendemos aumentar volumetria nem intervir ao nível da morfologia da fachada exterior mas pretendemos alterar o uso (exemplo: Escritórios para Aparthotel) e layout interno também poderá aplicar-se o formato de Comunicação Prévia. Tempo necessário para aprovação, 3 a 6 meses.
Projeto de Arquitetura – Normalmente trata-se do processo mais complexo de aprovação junto dos Municípios. Dependendo das localizações, especificidades dos projetos e classe de ativos, pode obrigar à pronúncia de várias entidades externas ao Município. Esta é uma das razões que muitas vezes determina o longo ciclo de aprovação. Tempo necessário para aprovação, 9 a 12 meses.
Fase 2) Validação dos Projetos de Especialidades
Projetos de Especialidades – Os projetos de Especialidades requerem “validação” por parte dos Municípios.
Existem vários tipos de projetos de especialidades que podem fazer parte do processo de aprovação do Projeto, dependendo das suas características.
- Estabilidade / Estruturas
- Águas e Esgotos
- Instalação de Gás
- Energia / Eletricidade
- Telecomunicações
- Sistemas de Segurança contra Incêndio
- Elevadores e outros equipamentos especiais
- Aquecimento, Ventilação e Ar-Condicionado
- Outros
Tempo necessário para validação, 3 a 6 meses.
Fase 3 ) Obtenção do Alvará de Obras
Aprovação do Projeto Submetido - Esta é a validação/aprovação que permite desenvolver e executar o projeto aprovado, sendo obtido após aprovação do Projeto de Arquitetura e validação dos Projetos de Especialidades. O documento especifica as taxas que devem ser pagas ao Município relacionadas com a Infraestrutura Urbana.
Tempo necessário para aprovação, 6 a 18 meses. Depende do nível de complexidade do Projeto/Processo.
Alvará de Obras – Permissão necessária para iniciar os trabalhos de construção que pode ser requerida após a aprovação do projeto. O processo de validação junto do município “obriga” à existência de um Alvará de Construção por parte da empresa que vai assumir a responsabilidade da execução da obra. O objetivo deste Alvará de Construção é demonstrar que a empresa tem conhecimento técnico e “habilitações” para executar o projeto licenciado e os trabalhos previstos. Normalmente, o Promotor / Dono de Obra submete o processo de obtenção do Alvará de Obras após a escolha do Empreiteiro Geral e respetiva assinatura do Contrato de Construção. Pode dar-se o caso do Promotor/Dono de Obra ser detentor do Alvará, deixando de depender de terceiros para concluir o processo junto do município. Todas as taxas de licenciamento urbano deverão estar liquidadas para obtenção do Alvará de Obras.
Tempo necessário para validação, 1 a 3 meses.
OVP (Ocupação de Via Pública) – Permissão que permite a utilização temporária da via pública tendo em conta as condicionantes e necessidades da obra a executar, podendo ser requerida em paralelo com o Alvará de Obras.
Esta permissão pretende garantir que a ocupação temporária seja realizada de forma segura, organizada e em conformidade com os regulamentos locais, para evitar distúrbios desnecessários ao público em geral e para manter a integridade e funcionalidade das áreas públicas.
Tempo necessário para validação, 1 a 3 meses.
Fase 4) Conclusão dos trabalhos de construção e obtenção da licença de utilização - Normalmente, quando recebemos o “Deferimento Final” Aprovação do Projeto submetido (descrito na Fase 3), além da especificação da taxas de licenciamento urbano a liquidar, também são descritos os documentos e certificações necessárias para requerer a Licença de utilização do edifício após a conclusão dos trabalhos de construção.
As certificações e respetiva documentação podem diferir, dependendo das características do projeto, classe de ativo e uso do edifício.
Tempo necessário para aprovação, 3 a 6 meses.
Conforme tive oportunidade de referir acima, após terminar os trabalhos de construção, existe necessidade de certificar o edifício, existindo vários tipos de certificação. Abaixo indico algumas das mais usuais.
Água e Esgotos – Existe a necessidade de certificar os trabalhos executados junto das autoridades competentes e requerer a conexão às redes públicas. O tempo necessário para concluir o processo pode oscilar entre 2 a 3 meses, desde o momento que requisitamos a supervisão/fiscalização dos trabalhos executados até ao momento em que as “especialidades” estão conectadas à rede pública e preparadas para serem utilizadas.
Eletricidade e Telecomunicações – A certificação das Telecomunicações pode ser mais simples do que a certificação do sistema elétrico. A primeira fase do processo apenas requer a supervisão/fiscalização dos trabalhos executados. Se os trabalhos executados estiverem de acordo com os projetos validados, o processo é simples e pode necessitar de um mês para ser concluído.
A segunda fase do processo, que consiste na ligação do edifício ao sistema das operadoras, pode ser um pouco “mais confusa” e o tempo necessário para a sua conclusão pode atingir os 3 meses.
Sistema de Gás - A certificação do Sistema de Gás requer a supervisão/fiscalização dos trabalhos executados.
A segunda fase do processo, que consiste na ligação do edifício ao sistema da operadora contratada, vai requerer a certificação do mesmo tendo em conta a sua especificidade.
O tempo necessário para concluir este processo pode ascender a 3 meses.
Certificação Energética e Certificação Acústica – Processos simples que necessitam de 2 a 4 semanas para se concluírem, dependendo do nível de complexidade do projeto.
Sistemas de Segurança Contra Incêndio – Processo de certificação simples que poderá exigir maior nível de especificidade dependendo da classe de ativo e respectivos riscos associados à sua utilização.
Elevadores e Outros Equipamentos Especiais – Processo de certificação simples que poderá exigir maior nível de especificidade dependendo da classe de ativo e respectivos riscos associados à sua utilização.
Analisando as fases do processo de licenciamento apresentadas, rapidamente concluímos que o tempo é uma variável de grande incerteza. Depende do nível de complexidade do projeto, do Município e do seu processo, da necessidade de consulta a entidades externas, da apreciação dos Técnicos, estratégia do Requerente, etc.
O nível de subjetividade é elevado e o sistema é muito burocratizado e complexo.
Entre a Fase 1 e Fase 3, ou seja, entre o momento que submetemos um projeto para apreciação e o momento em que temos autorização para iniciar a obra, podem decorrer entre 7 meses a 19 meses. Atenção que estou a apresentar tempos médios.
A Fase 4, Pós-Obra, já tem menos burocracia associada e o tempo médio para certificar o Imóvel e obter licença de utilização varia entre 3 meses a 6 meses (tendo em conta que algumas certificações poderão decorrer enquanto se terminam alguns trabalhos de construção, nomeadamente acabamentos mais finos).
Dito isto, tendo em conta que uma obra com alguma dimensão (+ de 2000 metros quadrados) necessita de cerca de 18 a 20 meses para ser executada (dependendo do nível de complexidade), podemos afirmar que muitas vezes (em termos médios), mais de 50% do Ciclo de Desenvolvimento Imobiliário de um determinado imóvel/empreendimento é “burocracia e papelada”.
Tendo em conta a evolução do setor da construção com novos métodos que visam melhorar os tempos de construção através da “industrialização” de processos, se não melhorarmos o processo de licenciamento e os seus timings, a burocracia será ainda mais representativa no Ciclo de Desenvolvimento Imobiliário.
Numa economia “cada vez mais rápida e de ciclos cada vez mais curtos”, é essencial diminuir o ciclo de “burocracia” porque as consequências são muito negativas.
E quais são as consequências?
Podem ir desde o atraso dos projetos e respetivo impacto nos Planos de Negócios concebidos até a Insolvência das Pessoas/Empresas por incapacidade de aguentar enormes ciclos sem receita e com enorme exposição a variações do próprio mercado (Inflação, Taxas de Juro, etc) . Não podemos esquecer que o tempo tem sempre um custo associado.
Uma coisa é certa, a Imprevisibilidade afasta o investimento. O risco diminui o valor dos ativos de desenvolvimento, sobretudo em ciclos económicos de incerteza.
O que podemos fazer para melhorar o ciclo de licenciamento?
A digitalização do processo e a inclusão dos sistemas BIM (Building Information Modeling) prometem maior nível de transparência, produtividade e capacidade de acompanhamento dos processos. Ainda assim será necessária uma reforma profunda ao nível das regras e regulamentação urbana. É preciso simplificar a burocracia e atualizar o processo de licenciamento e os seus fundamentos para os dias de hoje. As necessidades das pessoas, do meio ambiente e do mercado devem ser prioritárias na revisão.
Por outro lado, sou da opinião que a digitalização e a mecanização que cria nos sistemas é benéfica ao nível da produtividade e eficiência mas será necessário ter em atenção o nível de subjetividade de processos de licenciamento de imóveis. Cada caso é um caso. Se construímos um sistema em torno de uma norma que parte do pressuposto que tudo corre de acordo com a norma, estamos a criar um problema. Na minha opinião é aí que reside o principal problema.
Não podemos criar sistemas e partir de pressupostos que não “admitem” erros e tudo corre de acordo com a norma. Os erros são inevitáveis. É preciso criar condições para dar resposta aos erros, sugerir soluções em tempo útil, de forma simples e assertiva.
Quando é instruído um determinado processo de licenciamento/validação urbanística, se existirem erros, o(s) técnico(s) que analisam os processos apontam os problemas mas muitas vezes não sugerem as soluções. Esta situação obriga a um maior número de iterações “de baixa produtividade” entre as partes envolvidas (Requerente e Entidades Licenciadoras), muitas vezes sem conclusões, aumentando o tempo necessário para dar resposta e concluir os processos.
Em suma, se tudo correr bem, o processo de Licenciamento tende a ser mais rápido e expedito. Se existir um erro do requerente, por muito “pequeno que seja” o tempo para concluir o processo pode duplicar. Desta forma, parece-me óbvio o problema. O sistema não está bem pensado. O processo não está devidamente concebido.
A culpa não é dos Técnicos nem dos Requerentes, é da falta de adequabilidade do sistema e do processo que gera “desconfianças” entre as partes.
Errar será sempre humano. Se quisermos eliminar o erro humano, temos que colocar as decisões nas mãos da Inteligência Artificial. De todo o modo, sem erro não temos evolução.
Como não podemos eliminar o “erro do processo” e continuo a acreditar muito mais na inteligência humana do que na inteligência artificial, temos que pensar o processo e a sua sistematização com esse pressuposto, criando condições para dar resposta aos erros sem entrar num labirinto sem saída que coloca em risco a viabilidade dos projetos e a solvabilidade das pessoas e empresas que arriscam na criação e desenvolvimento de projetos imobiliários.
Até breve,
André Casaca