O Mercado Visto da Rua: Lei dos Solos - o que muda e como pode transformar o setor imobiliário?
A crise da habitação tem sido um dos temas mais debatidos em Portugal nos últimos anos. Com preços cada vez mais elevados e uma oferta limitada, a dificuldade em encontrar habitação acessível tem levado o Governo a intervir no mercado. A mais recente medida é a alteração à Lei dos Solos, que visa flexibilizar a reclassificação de terrenos para aumentar a oferta habitacional.
O Governo aprovou uma alteração ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT). O Decreto-Lei 117/2024, publicado a 30 de dezembro, introduz um regime especial de reclassificação dos solos, permitindo transformar terrenos rústicos em urbanos, desde que 70% da área de construção acima do solo seja destinada a habitação pública ou a habitação de valor moderado. Este conceito difere do conceito de "custos controlados", pois visa abranger a classe média ao definir valores máximos baseados nos preços medianos dos mercados local e nacional.
Quais foram as principais razões para alterar a Lei dos Solos?
A principal motivação para esta alteração consistiu em aumentar a oferta de terrenos urbanos para habitação, facilitando o acesso à habitação para a classe média, um segmento que enfrenta enormes dificuldades, especialmente nas grandes cidades como Lisboa e Porto. O Governo defende que a escassez de solo urbano tem um impacto direto no custo da habitação e que flexibilizar a reclassificação de terrenos pode ajudar a reduzir esses valores. No entanto, a sua aplicação pode ter diferentes consequências consoante a fiscalização e regulação que forem asseguradas.
Como se espera que influencie os preços dos terrenos e da habitação?
Se for bem regulada e os preços forem ajustados à realidade dos rendimentos médios das famílias, a lei poderá ajudar a mitigar o problema. No entanto, sem mecanismos rigorosos de controlo, há o risco de que os imóveis acabem por ser adquiridos por investidores e revendidos a preços mais altos, limitando o acesso aos que mais precisam.
Alguns estudos recentes indicam-nos que o rendimento médio das famílias portuguesas não acompanhou a escalada dos preços da habitação nos últimos anos. Entre 2015 e 2023, os preços das casas aumentaram mais de 80%, enquanto os salários subiram apenas 20% no mesmo período de tempo. Desta forma, se não houver um teto bem definido para os preços das habitações de valor moderado, muitas famílias continuarão sem capacidade de compra, especialmente nas grandes cidades.
Quanto pode custar uma habitação de 'valor moderado'?
O conceito de habitação de valor moderado será definido com base nos preços medianos do mercado local e nacional. Para se ter uma ideia do que isso pode representar, apresentamos um exemplo prático:
Em 2023, o preço médio de venda de um imóvel em Lisboa foi de 5.000 €/m². No Porto, situou-se em 3.500 €/m².
Uma vez que o Governo estabeleceu tetos máximos para a habitação de valor moderado em 20% abaixo do preço médio de mercado, se tivermos em conta os dados de 2023, de acordo com a nova lei, os preços médios de venda de um imóvel seriam de 4.000 €/m² em Lisboa e 2.800 €/m² no Porto.
O grande desafio será garantir que esses preços sejam realmente acessíveis para a classe média, cujos rendimentos continuam muito abaixo da média europeia.
Que problemas no ordenamento do território esta lei pretende resolver?
A lei procura, também, solucionar alguns problemas estruturais do ordenamento do território, como a escassez de terrenos para habitação, os entraves burocráticos na reclassificação dos solos e o desequilíbrio territorial. A pressão imobiliária nos grandes centros urbanos continua a aumentar, enquanto muitas áreas periféricas permanecem subaproveitadas ou até mesmo abandonadas. Ao conceder maior autonomia aos municípios para reclassificar terrenos, o objetivo é agilizar processos e aumentar a oferta de habitação acessível. No entanto, esta descentralização também pode gerar desigualdades entre concelhos, dependendo da forma como cada um gerir esta nova responsabilidade.
A exigência de 70% da construção para habitação acessível será suficiente para garantir preços mais baixos?
A exigência de que 70% da construção seja destinada a habitação acessível levanta dúvidas sobre a sua verdadeira eficácia. Tudo dependerá da definição exata do conceito de "habitação acessível" e da forma como os preços serão controlados. Se não houver restrições claras na revenda, as unidades inicialmente vendidas a preços acessíveis podem rapidamente ser revendidas a valores de mercado, anulando o impacto social da medida. Outros países, como os Países Baixos e a Alemanha, têm mecanismos que limitam a revenda e o arrendamento destas habitações, para garantir a sua acessibilidade a longo prazo.
Quem será responsável por fiscalizar o cumprimento das novas regras?
A fiscalização deste novo regime será feita essencialmente pelos municípios, mas há dúvidas quanto à sua capacidade técnica e a nível de recursos para gerir o processo de forma equilibrada. Câmaras de maior dimensão, como Lisboa e Porto, dispõem de departamentos de urbanismo bem estruturados e mais robustos, mas concelhos mais pequenos podem enfrentar dificuldades. Deve-se avançar com a criação de uma entidade nacional de monitorização, para garantir que as decisões municipais seguem critérios de ordenamento sustentável?
Quais são os maiores riscos associados?
Um dos maiores riscos apontados é o crescimento urbano desordenado, caso a lei não seja devidamente controlada. Contudo, a legislação mantém a proibição de construção para as zonas protegidas e solos de alta aptidão agrícola (Classe A e B), bem como para as zonas de risco (áreas sujeitas a inundações, incêndios e erosão costeira) e para a orla costeira, praias, dunas e margens de cursos de água.
Outra dúvida importante passa por saber o que acontecerá com terrenos reclassificados que não forem urbanizados dentro dos prazos estabelecidos. A lei prevê que, nesses casos, a classificação original possa ser revertida, mas a fiscalização deste processo será fundamental para evitar situações de especulação. O risco de beneficiarem apenas proprietários de terrenos e promotores imobiliários é uma das críticas centrais da nova lei, especialmente porque não houve uma ampla consulta pública antes da sua aprovação.
Conclusão
A alteração à Lei dos Solos é uma tentativa ambiciosa de responder à falta de habitação e de facilitar o acesso à mesma para a classe média. No entanto, o sucesso da medida dependerá, em grande parte, da sua implementação e da capacidade de fiscalização. Sem mecanismos eficazes de controlo, esta reforma não será bem-sucedida.
Se, por um lado, esta lei pretende democratizar o acesso à habitação, por outro, coloca desafios sérios ao planeamento urbano e à sustentabilidade territorial. Será que vai ser suficiente para resolver a crise habitacional, ou vai acrescentar novas dificuldades?
Espero poder contribuir para o debate sobre esta temática bastante importante. Sintam-se à vontade para comentar e acrescentar novas ideias!
Um abraço,
Gonçalo Miguel